domingo, 20 de novembro de 2011

A insustentável leveza do ser

"O drama de uma vida sempre pode ser explicado pela metáfora do peso. Dizemos que temos um fardo nos ombros. Carregamos esse fardo, que suportamos ou não, lutamos com ele, perdemos ou ganhamos. O que precisamente aconteceu com Sabina? Nada. Deixara um homem porque quisera deixá-lo. Ele a perseguira depois disso? Queria se vingar? Não. Seu drama não era o drama do peso, mas da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser."

Milan Kundera

terça-feira, 15 de novembro de 2011

o quarto

Enxerguei-te pela primeira vez numa manhã de sol. A vida que pulsa por trás do mundo nunca me pareceu tão próxima: toda a energia que houvesse estava em você. Enxerguei-te, pela primeira vez, naquela manhã. O quarto escuro nos abrigou, o dia raiava e exalava lá fora.
Amanheci sem pudor, sem amarras ao passado nem a nada além desse momento. Você abriu os olhos, delicadamente, convidando-me a ser teu. Mais uma jornada de imersão nos teus sonhos: os teus sonhos tão intensos que continham mais beleza que a minha vida inteira. Lembraria de você durante toda uma eternidade pela forma como te vi naquela manhã.
 Quis perder-me nessas horas e não voltar, quis que pudesse haver uma forma de fazê-las eternas, contra a intransponível barreira do tempo que um dia faria tudo desaparecer. Que o desgaste não nos atingisse jamais, que ficássemos entre essas paredes, longe das janelas, e para sempre aqui nesse vazio cômodo. Que o afeto não se fosse, que os teus olhos não se acabassem longe dos meus, que o certeiro caminho do afastamento não se pusesse entre nosso êxtase.
Ficaria dentro desse quarto, preso e quieto, se isso me garantisse continuar aqui sem findar, nunca chegando à ultima linha da reta, num último suspiro sem pensar - por que não pude nos prender aqui antes que a vida viesse a interromper nossa fantasia? E tudo pareceu tão real, o tempo todo parecia real, teu corpo e teus gestos, cada movimento simples que te aproximava de mim, toda a vida que eu havia ganho em um segundo, a vida que pareceu tão densa em mim naqueles momentos como jamais havia sido. E, agora, tudo me foi tirado, tudo se foi contigo dissipando-se pelas horas e deixando ir, deixando ir numa constância de ir embora que chega a apavorar.
Longe do quarto, da tua voz e da tua memória, longe e apagado de tudo, busco por qualquer pequeno resquício de intensidade que possa haver por aqui, queria ter nos trancado para sempre naquele quarto, queria que o quarto fosse nosso habitat eterno, queria que não existisse nada nunca além do quarto, nenhuma outra pessoa na vida inteira alem de você, que tudo fosse tão seguro e o tempo não viesse, a vida não viesse trazer o irremediável. Não podemos ficar ali, continuar ali, esperando que nunca passe, que nada passe? Eu ficaria olhando o teu rosto e dormiria tranquilamente a cada dia sabendo que você ainda estaria verdadeira e viva perto de mim.
Meus dias entristecem-se na tua lembrança. Ouvi tua voz ao longe, em minha mente, agora que já estás tão distante. Uma distância mais intrínseca do que física, agora que os teus sonhos não conheço mais. Quem és tu, não sei mais. Visualizei, em alguma dimensão muito parecida com um delírio, um sorriso que me dizia que tudo ficaria bem, que essa sensação de angústia de fim de tarde iria passar. Que a sua aparição no meu triste roteiro, que de comédias ou romances já carece, nada mais foi que um ponto de luz no meio do breu. Para que ainda houvesse esperança, você me dizia. Que eu guarde a tua imagem, vívida e real em mim, não como uma memória ou um fantasma, mas como uma parte da história a ser levada, a ser carregada comigo como se não houvesse o tempo, como se não houvesse o fim. Que não deixe morrer as nossas palavras, que não deixe que morra nada, e, nessa visão, você me implorou que não deixasse abandonar o teu corpo deitado sob o meu na cama. Que eu revivesse a cada dia a parte sua que ficou em mim, que a levasse junto, que esquecesse todo o resto e enfim repousasse em paz.