As horas, nunca neutras.
As horas se fazem finas e escorregadias agora. Ouço o bater de um relógio que sei que não está ali. Ouço barulhos inventados em minha mente, irreais no plano concreto desse quase-mundo que abrigo agora (ou será que não abrigo por completo?). A algum lugar pertenço, agora. Em algum lugar estou, agora. Páro e penso e o pensar pára, o pensar se interrompe em continuidades desfeitas que já não sei dar. Sou a vida que nunca tive. Sou as ruas dessa cidade nas quais nunca ninguém pisou, nenhum passo, nenhuma marca, nada habitam. A minha existência nua, escancarada, se esfria quando toca no real. Teme-se, inibe-se quando ousa uma aproximação. Viver é uma volta sem fim, voltar sem nunca ter ido, ir e voltar e pensar e pensar e parecer que se move de lugar quando se está estático num mesmo universo finito. Os caminhos da mente infinitos me atraem mais, confortam mais. A vida parou por trás do meu silêncio, fecho os olhos e deixo que tudo aconteça sem a minha presença.
E sinto, às vezes, que vivo mais para mim do que para os outros, que não sou capaz de escutar o que as pessoas dizem e nem nunca serei. Compreendo, sempre compreendo, mas participar parece exigir um esforço a mais. Sou livre dentro de mim, somente. Sou mais do que há para ser visto, e silencio a cada passo lento, instigo o medo de ir para frente e o medo de voltar para trás.
Mas a vontade não falta, sou puro desejos que tentam alcançar algum chão, nesse espaço vivente que ultrapassa qualquer percepção. E me soa tão vazio, tão pouco viver de percepções. Feliz é quem vive de sensações. Antes estar no escuro do que no claro. Andar sem fim por ruas estreitas, lugares fundos. Encorajo-me no andar, por saber que há movimento, por saber que o cenário muda a cada passo. Escolho avistar alguma coisa no fundo desse horizonte, agora. Uma casa laranja que aparece rente ao céu, pequena, distante. Desafio-me a chegar até lá. Até lá, o cenário inteiro terá mudado. Até lá, meu pensamento terá imergido em outras idéias, tantas idéias, quantas couberem no espaço do tempo. São momentos como esse que me fazem pensar que a vida vale a pena. Saber que posso enxergar uma casa laranja num fim de trajeto e tentar chegar até lá. A casa não é nada, mas a representação dela é o que me importa. A casa significa que eu atingi um fim. Um ponto qualquer, linha final. Significa que eu consegui.
Quando atinjo esse ponto, o peso do mundo sob mim se esvai. Torno-me um ser leve, como se fluísse pelas horas deixando toda a angústia para trás. Deixando aquele aperto agonizante, esquecendo de tudo o que não for vida dentro de mim.
E sinto, às vezes, que vivo mais para mim do que para os outros, que não sou capaz de escutar o que as pessoas dizem e nem nunca serei. Compreendo, sempre compreendo, mas participar parece exigir um esforço a mais. Sou livre dentro de mim, somente. Sou mais do que há para ser visto, e silencio a cada passo lento, instigo o medo de ir para frente e o medo de voltar para trás.
Mas a vontade não falta, sou puro desejos que tentam alcançar algum chão, nesse espaço vivente que ultrapassa qualquer percepção. E me soa tão vazio, tão pouco viver de percepções. Feliz é quem vive de sensações. Antes estar no escuro do que no claro. Andar sem fim por ruas estreitas, lugares fundos. Encorajo-me no andar, por saber que há movimento, por saber que o cenário muda a cada passo. Escolho avistar alguma coisa no fundo desse horizonte, agora. Uma casa laranja que aparece rente ao céu, pequena, distante. Desafio-me a chegar até lá. Até lá, o cenário inteiro terá mudado. Até lá, meu pensamento terá imergido em outras idéias, tantas idéias, quantas couberem no espaço do tempo. São momentos como esse que me fazem pensar que a vida vale a pena. Saber que posso enxergar uma casa laranja num fim de trajeto e tentar chegar até lá. A casa não é nada, mas a representação dela é o que me importa. A casa significa que eu atingi um fim. Um ponto qualquer, linha final. Significa que eu consegui.
Quando atinjo esse ponto, o peso do mundo sob mim se esvai. Torno-me um ser leve, como se fluísse pelas horas deixando toda a angústia para trás. Deixando aquele aperto agonizante, esquecendo de tudo o que não for vida dentro de mim.
As horas trazem o entardecer, agora. Lembro-me de alguns momentos em que senti o vazio, e agradeço por não senti-lo mais. Estive rodando sem sentido em busca de alguma beleza, agora parece que entrei definitivamente no meu lugar. A personificação daquilo que sou, mais que um estereótipo ou um personagem, sinto-me como eu mesma nesse momento. E essa sensação me é suficiente. É o bastante sentir-se inteiro no lado de dentro. Digo alto para as colinas que estou verdadeiramente dentro de mim agora. O borro laranja do sol atinge as montanhas conforme os minutos passam. Estou só, mas não me sinto assim. Há toda uma paisagem que me faz companhia, há inúmeras sensações que não me permitem esbarrar no abismo do nada, sei que pertenço a algum lugar e alguém está por vir.
Alguém está por vir. Penso nas pessoas do meu passado, são elas que habitam a minha mente na maior parte do tempo. Penso nas pessoas que gostariam de estar aqui, presenciando esse pôr-de-sol, que não é o mais bonito que eu já vi, porém foi testemunha desse momento e do que eu senti. Quando penso nas pessoas, penso em tudo o que nos faltou dizer - porque muito sempre nos falta: palavras, momentos, oportunidades - tudo o que poderia ter sido e não foi. De alguma forma, tudo o que falta sempre parece maior ao que se tinha.
No entanto, a pessoa a quem espero agora, não é ninguém específico. É alguém novo, alguém que desconheço, que não faz parte desse mundo ainda. Não penso em palavras, penso numa comunicação de sentidos. Quando se olha para alguém, e no olhar toda a demanda do mundo se volta ali. No olhar, você se deposita por inteiro no instante. Livra-se do seu papel de ser solitário e sonhador e começa a perceber que, talvez, realmente precise dos outros. Talvez, precise de alguém. Alguém que não está por vir, não agora, porém algum dia. E passa-se, então, a desejar aqueles momentos compartilhados. Vive-se em parte para si, em parte para o outro, o sentimento de estar só e inteiro em si mesmo já não é suficiente. A solidão parece trazer a vontade e a saudade do outro, o foco nesse pensar que dirige todo o sentir para alguém que não a si próprio. É isso o que chamam de amor?
É triste admitir que se precise dos outros. É difícil entender que a melancolia de estar em si mesmo não basta. Comunico-me com o mundo externo da minha forma, interajo com ele de forma livre, abundante. Ando pelo mundo inteiro, mudo as paisagens, experimento sensações, deixo o ar surgir no fim de tarde e lembrar que em breve será noite. Vejo os pássaros passarem continuamente, parecendo tão distantes e livres. Passam por cima de mim como se pertencessem a um mundo paralelo. As horas fluem num ritmo contínuo para mim, desvanece-se aquilo que não é para ficar, fico no espaço do que sobreviveu, num ponto sólido de vida em meio a tanta abstração – fico nesse ponto, permaneço nele. Ele é o que me faz continuar. Mantém meus olhos atentos à imensidão que há por trás dessa existência. Mas precisar de alguém, por quê? Por que essa ânsia em dividir-se com o outro, essa necessidade de compartilhar o que somos, de pensar em conjunto, sentir em conjunto? Escuto a melodia das horas no silêncio, e sei que isso é algo particular. Outra pessoa jamais irá escutar essa mesma melodia, não da mesma forma com que eu me deixo levar por ela, e então como – alguém, me explique como – irei dividir-me assim?
Escuto os meus próprios sons, movo-me de forma bamba e contraditória, às vezes sem prestar atenção nos detalhes a minha volta. Sentimentos ambíguos de falta de direção, devo ir em frente? Penso, então, que não posso ficar parada num mesmo lugar, e continuo. Tento olhar para trás e enxergar qualquer sentido em minha vida, raramente consigo. Só o que vejo é o branco. Uma união de vazios, de lampejos que se formaram na solidão. No ápice de meus momentos, estive só. Estive só sempre que senti alguma coisa. Comuniquei-me com meus próprios sonhos, com a cidade, com as paisagens, com pessoas que nunca estiveram ali. Lembrei da infância, e tocou-se algo dentro de mim. Nesse inventário de conhecimentos, sempre esperei alguém, e ainda espero, se é que posso dizer que espero algo da vida além de senti-la em sua forma própria, senti-la como verdade em mim.
O que espero da vida é nada além dela mesma. Meus desejos são contradições, porém existentes. Não há vida sem desejos, não há universo sem sonhos. Eu queria poder ver a vida sem essa carga que me acompanha durante todo e cada trajeto, esse sentir, esse lembrar, esse pensar, esse fantasiar e esperar em cima de tudo, eu queria poder me deixar levar pelas ondas do ar, do mar, de uma forma livre e crua: simples e humana, apenas. A existência em si mesma, apenas.
Sombras se formam pelo vento, a luz do sol desvanecendo para dentro de alguma outra esfera, alguma outra vida ou realidade, será? Sempre estive nesse mesmo lugar, nesse espaço quase inconsciente, quase longe de tudo, e é somente aqui em que posso tocar no inventado que esqueceu de se tornar real. Ou talvez fui eu quem não quis que se tornasse real, a vivência de fatos nunca seria o suficiente. E não me venham com idéias de que eu devia me contentar, pois é esse olhar lunático e cambaleante o que me mantém aqui, são as fantasias do que não foi e nem será que me fazem querer andar em frente, é saber que o sol foi embora, mas amanhã ele voltará, e posso então pensar para onde ele foi, e ficar me perguntando até o anoitecer para onde ele foi, e sentir verdadeiramente cada momento ir passando um atrás do outro, observando cada tom que muda no céu, cada vento que passa pela natureza, estarei só nesse lugar sentindo tudo isso e tudo em mim, tudo intenso, tudo íntegro e real, palpável, tocável, em mim adentrando o mais intocado inventário meu. O calor em mim, o ar em mim, a luz em mim, a vida em mim. A vida em mim me tornando viva, longe do espaço vazio e frígido a que sempre temi cair.
Agora, palavras. Palavras e mais palavras invadem a mente, palavras que quero dizer e palavras que me foram ditas, palavras que eu nunca disse, palavras que pensei em dizer, palavras que ficaram guardadas e engolidas e nunca conheceram o lado de fora do mundo, nunca descobriram uma reação ao que elas significavam, sempre no lado seguro, sempre, sempre aqui enfeitado por tanta solidão neutra que um dia sufocou. Sufocou a carga inteira aqui.
O que se faz com essa carga presa, intocada, corroendo os últimos vestígios de sanidade? Agora, deixo-a ir, deixo tudo ir. Deixo tudo ir com o vento, tenho certeza de que a superfície levará seus rastros para algum lugar. Algum lugar a que pertençam, por trás do horizonte, longe. Livrar-me-ei dessa angústia estrangeira e sem sentido que se pôs aqui, no espaço que há entre mim e o mundo. Essa distância não existirá mais. Sinto o alívio e o conforto da libertação. Sinto-me tão dentro, tão submersa na profundeza humana que não a perderei novamente jamais.
Aprendi que a nostalgia sempre estará aqui, e que, muitas vezes, ela é falsa. Percebo, agora, e somente agora, que tudo fui eu quem criou. Isso aqui, esse momento, esse sentir, essa imagem, essa paisagem, esse sentimento, tudo, tudo no meu imaginário mais bonito e mais real, toda a esperança pelos dias reluzentes, por alguém que me mostre qualquer sentido, por algum momento que me faça encontrar-me diretamente comigo mesma, segura e distante do abismo do nada, seguramente no júbilo de horas verdadeiras, nunca neutras, jamais neutras, que sejam escuras porque pertencem ao lado de dentro, porém claras por fazerem-me ansiar pela vida, por toda a vida em sua crueza, a vida que não veio e a que ainda virá.
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