domingo, 14 de agosto de 2011

O fotógrafo

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 E foi assim, de um momento para outro, que libertou os desabafos recolhidos na sala de jantar. Sobre a mesa, os cacos de vidro, o cheiro a vodca exalando pela madeira e a descoberta da solidão posta ali, como prato principal. Para quê quisera guardar tanta beleza, afinal? Para quê quisera colecionar rostos perfeitos entre a moldura, luzes e cores enquadradas com absoluta precisão, retratos mundanos concretos? No fim, sobraria o pó, as cinzas, a destruição em cima da mesa. Seu paraíso particular, somente seu e de mais ninguém, obra de sua genialidade, de sua obsessão pela grandeza, resumia-se agora a figuras manchadas, sujas, rasgadas; molduras quebradas, estraçalhadas, jogadas. A representação das obras a que tanto contemplava já não tinha mais valor algum. Só ele iria vingar, no final. A beleza, a inteligência, o glamour falso que tanto buscara jogar nas telas para que fosse seu não recebia menor importância. Não mais.
Seu amor pela fotografia se sobrepunha a quaisquer outras necessidades. Ele fechava os olhos e passava a enxergar, no mesmo instante, aquilo que buscaria captar. O mundo não faria sentido se não representado por imagens. Acreditava nas figuras da verdadeira beleza e na harmonia de cores, lugares, expressões, pois nada existia além da visão. A vida pode ser guardada, o mundo cabe num espaço pequeno em sua gaveta através de um único recurso.
2
- Então, você é um fotógrafo? É isso que você faz?
Ele olhou para o lado com certa impaciência, focando as atenções nas pessoas dispersas no bar.
- Sim. Eu capto aquilo que me interessa nesse mundo.
- Ah, poxa – ela disse, em meio a um sorriso forçado que talvez fosse demasiadamente amarelo – Parece legal.
- “Legal” não é definição justa para o meu trabalho.
A moça encabulou-se e, na tentativa de fuga de seu olhar, começou também a observar as pessoas no bar.
- Desculpe, não quis ser rude. – o homem desculpou-se, ainda que incapaz de sorrir.
- Tudo bem.
- E então? Você topa?
- Topo o quê?
- Fotografar para mim.
Não era bonita. Mas tinha um quê de exótico que lhe intrigava demais. A expressão no olhar era atordoante. Logo podia enxergá-la num cenário limpo, aberto, um tanto quanto vazio, de modo que a atenção iria imediatamente aos olhos carregados. Carregados de quê, meu Deus? Decifraria depois, quando o tão imaginado retrato estivesse em suas mãos.
- Ah... – a moça tentou disfarçar a timidez. – Claro. Topo sim.
Ele sorriu, contemplando os dentes imperfeitos da futura modelo. É isso mesmo, captar a imperfeição também é uma arte. Sentia-se modesto nesses momentos. Focaria, então, em descobrir por que os olhos da moça lhe pareciam tão cheios de alguma coisa, e ao mesmo tempo tão vazios. Não havia nada de alegre no que via ali. Possivelmente, uma rejeição, solidão, instatisfação. E não é disso o que todos somos feitos? A beleza não é um mundo abrigado por cores, mágica ou fantasia. A beleza está no que há de humano. Nas horas sozinhas dessa moça, desamparada, em um quarto sem janelas em seu apartamento quase destruído... Ah, ele tinha certeza de o que o apartamento da moça seria quase destruído. A decadência era nítida em seu olhar. Ele podia vê-la, senti-la abraçando seu próprio abandono, vendo escorrer as lágrimas que deviam cair todos os dias.
- Vamos para a minha casa? Ou você quer mais uísque? Tem outras bebidas em casa, se você quiser... – ele esforçou-se para transparecer ser educado.
- Sim. Tomo na sua casa, na sua casa está ótimo.
Ela sentou-se no sofá e foi logo tirando o casaco. O que está fazendo?, o fotógrafo pensou. Pensa que irei fotografá-la aqui? Então percebeu o quanto parecia que encaixava perfeitamente no sofá, os pés desajeitados sob a almofada e a expressão perdida.
O olhar da moça era frio, e logo o ambiente por inteiro tornou-se também. Ele sentiu as paredes congelando e, naquele mesmo instante, soube que era aquilo o que iria captar. Mostre-me alguma emoção, ele disse sabendo que sentimento algum ela transpareceria de qualquer forma.
- Você sabe... Essas horas são surdas.
Ele pareceu ter levado um susto.
- Como?
A moça continuou:
- Sim. Tem horas que posso ouvir tanto barulho, tantas melodias no silêncio... Elas são movidas a tantos sons que guiam cada pensamento. Mas agora não. É como se eu estivesse dentro de uma enorme bolha de ar sugando tudo de mim, tudo, tudo, tudo, inclusive a melodia.
Ele ajeitou a posição da câmera entre as mãos, parecendo atordoado
- Você quer um café ou mais champagne? – sugeriu educadamente.
- Você odeia quando as modelos começam a falar, não é mesmo? – ela mudou os pés de posição no sofá, como se estivesse posando.
- Nada merece o ódio, foi algo que aprendi.
- Nada?
- Nada.
Hmm, ela fez com a boca, um som mudo e silenciado. Passou a pensar nas horas surdas novamente. Era uma metáfora e tanto. Talvez devesse escrever um livro, assim estaria bem longe dessa vida supérflua.
- O que é a beleza para você, hein?
Ele riu da pergunta.
- Você não viu os retratos pela casa?
- Vi. Mas foi pouco o que eu consegui entender.
- A beleza está aqui, você não vê? – ele acenou para o espaço vazio.
- Você consegue vê-la em mim? – a moça disse timidamente.
- Sim.
- Ninguém nunca vê.
- Eu sempre vejo.
- Você é um fotógrafo.
- Apague a luz – ele disse, aproximando-se da moça no sofá, que ergueu a mão ao abajur apertando o botão.

Um comentário:

  1. Um charme esse conto. Meio noir e tal. Gostei desse fotógrafo aí; de repente até me identifiquei com ele.

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